10/30/2006


Uma criança de três anos, da espécie Australopitecus Afarensis, sucumbiu para a vida conhecida à c.d. 3.4 milhões de anos, na actual margem do rio Awash, Vale do Rifte, sufocada Etiópia. A reportagem é capa de Novembro da National Geographic Magazine, como se diz onde nasceu. A revista.
Ainda não olhámos todos bem para esta menina de Dikika, última alcunha do fóssil de arenito. vou tentar não ser banal e evitar dizer que se o fizéssemos, das entranhas de pedra talvez nos reflectíssemos, e como Zeresenay, o arqueólogo, tivessemos de separar o nós que guarda o fóssil, da pedra que o conserva, a cinzel de dentista, sem anestesia. Mas não o vou dizer. principalmente porque acho que muito poucos de entre nós o conseguiriam fazer sem de imediato magoar a gengiva, e esse corte ser o somenos quando comparado com outros possíveis danos. Não devemos magoar ninguém. e muito menos de propósito.
Contudo, e apesar deste escrúpulo, não sei se humano, não sei se meu, dou-me a certos luxos. que para mim, só são superfluos para vocês. como os vossos são para mim, sem ofensa. atiro-me ao que ainda ninguém viu, ou apenas não pode provar que alguém viu, algures, e pode ter visto. tento saber do futuro, e apenas do futuro agora, que é chão bem mais confortável para mim, porque, como disse, nem eu nem ninguém se vai preocupar com a sua prova. que não existe.
Se, como somos agora, e fomos, e podemos ver como fomos, no passado, através de método científico, se, e só se, os nossos olhos de hoje observam bem os nossos eus de ontem, então o eu de hoje tem pelo menos acesso ao futuro previsto. que, mais coisa menos coisa, vai ser um futuro de passado. e os fósseis encontrados ontem, aqueles mesmos que hoje nos indicam a soma das nossas hipotenusas, serão os nossos fósseis de amanhã, tão nossos como os encontrados ontem. tão eu como a menina de dikika, mais largura de ombros, menos força de braços, a soma dos factores que não impedem que eu a seja. e que vocês também a sejam, futuros candidatos a fósseis de arenito, se a composição da nossa poluição não tornar isso inviável, e só se esse dano não implicar com a arqueologia, que nesses tempos, pode ser a única ciência que reste, das ciências que inventámos. porque a questão em que a nossa consciência abstracta mais nos aproxima do vale do Rift na Etiópia, é a mesma questão que se impunha à mãe do fóssil da criança de 3 anos. se ela sonhasse que alguma coisa se lhe impunha. nós sonhamos, mas não a ultrapassamos em ignorância. não sabemos o que nos guarda a eternidade da morte. mais do que eternidade, será? ou apenas fósseis, engavetados em saliências rochosas, afagados por uma benevolência sem estratégias do meio, que te conserva, que te faz pedra de durar?
Eu proponho-me a enfrentar o mórbido. serei capaz de escolher o sítio para cair, aquele exacto rectângulo feito propriedade privada, minha agora, prova no futuro do meu passado que deixo aos meus olhos verem. serei pelo menos informação, um desejo apropriado, um carisma forte da sociedade que me enfraquesse e a que pretenço tanto ou tão pouco como qualquer outro vestígio arqueológico, algures, encontrado pelo homem.
Que haja alguém que me encontre. que eu duvido, piamente, que haja.

10/12/2006

O Teatro Nacional de São Carlos


Sentámo-nos. eu preferia ter ficado de pé para ser sincero. o assento mole, as costas rectas, de pau. antecipei a minha dor antes de baixarem as luzes e de subir o pano (que lá não estava mas que é um marco que uso, quiçá abusivamente); aquela mesma dor que tive no preciso momento em que me entreguei de corpo àquele objecto pequeno, feito para senhoras pequenas e que, nas próximas duas horas, seria o meu reino de árvore e artesanato. amaldiçoei o artesão, fosse ele biológico ou de máquina, chorei as minhas homoplatas e sentei-me na obediencia desse ritual: o de me sentar. antes dos outros e tudo, que eu nisto de pagar penitências sou o primeiro a chegar-me à frente, cioso do meu padecimento, orgulhoso da plateia chorosa e, talvez acima de tudo, inquieto perante o relógio que marca onde a coisa começa e a coisa acaba. sentei-me entre ruídos e o tempo não passava mais depressa por isso.
Olhei o teatro. não o conseguia ver mas olhava-o com sofreguidão, com mais olhos do que barriga. ouvi o eco distante dos atrasados, os eternos atrasados que se atrasam concerteza para minorarem os prejuízos lombares, retardarem a paixão das suas costas exigida pelos prazeres dos seus ouvidos, e percebi as armas dominando o recinto, exaustas dos séculos em que dominam tudo dessa perspectiva superior onde provavelmente não enxergam tão bem o espectáculo, o do palco e o dos homens. deveria haver quem perguntasse aos símbolos se eles se sentem bem nas alturas, quem averiguasse se os grandes não se sentiam melhor sendo pequenos. ou simplesmente se não gostavam por um dia de ser homens, e de cheirar a suor, e de beber água fresca, e de pagar impostos, e de fazer contas, ouvir música e até, quem sabe, terem dores nas costas.
Claro que tudo isto versa uma obsessão controlada, silenciosa, de que eu me queria livrar mas que não consigo sem ajuda. calculo que se estudassemos a fundo o problema do espectáculo sobre a óptica do espectador, teríamos ganhos relevantes, não só porque construiríamos cadeiras mais confortáveis, mas sobretudo, porque o conforto das nossas costas permitiria o total abandono dos nossos milhares de sentidos poéticos à fruicção da obra, à compreensão própria da obra, libertada do jugo enervante dos maciços sólidos que nos suportam a sedentarização.
Alto lá! quando a luz baixa, interrompendo os zumbidos humanos, sabemos todos que é altura de nos comportarmos. as conversas interrompem-se em xiuuus mudos, tudo tem de permanecer em intervalo depois da escuridão. a unidade musical de Chostakowski e a unidade matemática de Mozart deixam de se degladiar nos lábios sumidos de unidades materiais ainda mais sumidas que são os velhos conservados em comprimidos. também já não se pode continuar a vida da cristina através de facadas mórbidas de prazer, a explodirem o ódio em sangue da outra, que não está, foi a uma festa de bacocos, uma cacofonia filha, uma cacofonia! estamos suspensos, a música ainda não aquece, mas começa a prometer para lá dos holofotes modernos que dão contornos de limão à deusa romântica que não veio preparada para tanto UV1 e UV2. qualquer dia sacam-lhe a mama! despelam-na toda! um restauro cuidado, de pincelinhos e latinhas douradas, dão-lhe uns beijinhos de anti-corrosivo e mandam a música ir tocar para outro lado enquanto se resolve o cancro da velhice.
Já estou a entrar pelo tempo a dentro e assim não vale. estamos no intrevalo das nossas vidas, o espectáculo vai começar. Já aplaudimos, sedentos. Já percebi que as estrelas humanas têm sempre um jeito tremido de brilhar, agarrado de mãos, pés, cabeça e tronco a rituais mais e mais rituais, mais e mais agradecidos, mais e mais pavoneates. que toquem bem essas cordas! que soprem como nunca esses cantos! eu estou aqui, borlista mas apaixonado, e vão ter que me provar que nos merecem aqui sentados, doídos, muito importantes da nossa importância em fazer-vos os mais importantes de todos, com educação.
Se não me engano, começou afinado o batalhão de violinos que se posicionava estratégicamente no hemisfério norte do cosmos metálico. enlevava-nos na sua cadência trauteante como se os militares de repente fossem alegres para a batalha. como se não chorassem os seus corpos mesmo antes de os cheirarem, despojados de massa, a fruta fora de prazo. o maestro, o que manda em nome da ordem, tinha aquele peculiar jeito de mandar, sideral, espacial, de outro mundo, comum àqueles que neste mundo fazem por não lhe pertencer. pensei. façamos as guerras semelhantes a sinfonias e teremos pólens transportados em patas de insectos que voam aos círculos abraçando o mundo.
O poder da música consiste em fazer-nos sair da música quando a ouvimos e a experimentar dimensões menos constantes do nosso corpo. porque quando sabemos a delicadeza com que deve rufar o tambor não respeitamos apenas os dedos que percorrem a harmonia da harpa, nem o controlo de pensamento e acção que devora os fios pesados do violencelo, sentimos a total harmonia de necessidades que controlam todas as nossas insignificantes misencenes, e as significantes também. Tossem. uma constante, como as dores nas costas. tossem e mexem-se os homens, os aborrecidos, os pseudo-aborrecidos e os pseudo-interessados também. à sua vez, todos tossem, abafando todos os outros sons em movimentos de tecido roçado em pano. enquanto a música se adensa, percebo a nossa imensa necessidade de nos mexermos, o pleno exercício de um corpo para a frente mas que se lhe apetecer, vai para trás à mesma velocidade, que nos corpos, como se sabe, é constante.
Por esta altura já todos nós estivemos, nem que por segundos, em comunhão dramática com o palco. é hora de pagar tributo. há sociedades que o prestam em silêncio, pensando talvez que se aproximam mais do uno nessa vastidão de aridez. nós despejamos aplausos, aplaudimos tudo, furiosos, massacrados. queremo-nos fazer ouvir, ora essa! que os teus quinze minutos de fama sejam o som das tuas mãos vibrantes uma na outra a explodirem agradecimento! uns choram, provavelmente porque nalgum recanto do processo se aproximaram de si próprios. e podem não ter gostado do que viram. ou podem ter gostado muito, o que interessa é que choram porque o perderam. e lá vamos, cavalgando com o artista, que para nós será sempre dióniso em paz com todos os sacríficios, martelamos o ar, começamos tufões nos antípiodas. acordamos. percebemos que eles já lá não estão. Os artistas? Não, os antípodas. pateamos novamente, galhardamente. há quem se erga, há quem se curve. eu lembro-me bem de toda a minha incoêrencia e não exito em tributá-la também a essa salva de palmas. porque tem que ser, penso. porque a música continuou a tocar virginalmente, em pequenos intervalos de eternidade. não sei porquê, acho-o. e passaram-me, de forma mágica, as dores nas costas.

10/06/2006

O Império.


Ele estava deitado, estendido, esperguiçando-se. Mas depois ergueu-se, pequenino e miserável, escorrendo substâncias viscosas da boca. Que se encontrava no rabo, ao contrário dos animais decentes. Eu estranhei aquela intromissão entre a noite e os beijos que ela me dava, enquanto disparava a sua máquina de poemas com flash. Ela é a ternura do escuro em concha à beira-mar plantada, ou em lebre de campo que corre rápido e se esconde. Não estranham então que cada fogacho de tempo, cada enquadramento tri-dimensional em que ela se encontre seja o meu encontro marcado por antecipação antes de todos os futuros. E eu acariciava-a com os olhos e dizia-lhe mistérios aos ouvidos. Quando não sabia nenhum, inventava-o, se é que não os invento e re-invento sempre, todos os dias, ao entardecer. Jogávamos à apanhada e como sempre, aldrabávamos e ela deixava-se apanhar e eu deixava-me apanhá-la o que condiz com amor partilhado, oferecido, para todo o bem, e para todo o mal, se for preciso. Foi então que o vi, qual nódoa em tampo de pedra, aberração escorregadia e arrastada, mas sorridente, gozando o seu cheiro singular. Não era mais do que um insecto, uma miséria criativa que se alimentou das sobras. De todos os dejectos. E sorria! E arrastava-se! Devo dizer que o meu olho nú binacolou-se por assim dizer, atelescopidou-se melhor acrescentando, e eu podia ver, sem excepção, cada gota da sua baba suja a tropeçar da boca traseira e a desfazer-se a meus pés, contra as minhas calças! Passou-me Darwin pela cabeça, todos os pré-socráticos, atomistas ou não, exacerbei a importãncia de todos os físicos e aguentei-me parado, em revolta, respeitando todas as leis da matéria e do espírito. Ele gozava, estava de prato cheio! Bamboleou a carapaça e ginasticava, como um atleta deformado, uma pessonha que queria ser animal, fosse ele qual fosse, e o tentava provar dançando. Passo por ti e fechas os olhos. Porque tens valores! Porque tens moral! A sua vozinha esganiçada e doente, as palavras saiam-lhe de dentro já verdes, a precisar de água. Ela não o via. Nem com o zoom da sua máquina de poemas. Eu não insisti para que ela se debruçasse, para que visse uma coisa que talvez lá não estivesse. Chamem-lhe orgulho. Eu chamo-lhe lucidez. Aguentei. Podia escarrar-te essas calças velhas, de texteis ocidentais, feitos a oriente, por escravos, e nem mexias a mínima palha. Podia defecar-te os sapatos rôtos, orgulhosamente dalmáticos, tão artificias como o teu velho mundo e continuavas aí quieto, a fingir olhar o mar e contar as estrelas! Apaguei a luz com luz, disse-me ela interrompendo a inenarrável abjecção. Repara: temos escuro onde disparei luz. A máquina avariou disse-lhe eu. Sabes quem eu sou, sabes? Tomas-me por uma existência desprezível? Eis-me em esplendor: eu sou o IMPÉRIO e tu não és peça solta na engrenagem! Acabaram-se as leis. Tempo morto no tempo. Esborrachei-o. Ela falou muito depressa: mantém a posição, vai ficar um belo poema! Pois se salvei o mundo querida!? Dispara e tudo pode continuar.