10/12/2006

O Teatro Nacional de São Carlos


Sentámo-nos. eu preferia ter ficado de pé para ser sincero. o assento mole, as costas rectas, de pau. antecipei a minha dor antes de baixarem as luzes e de subir o pano (que lá não estava mas que é um marco que uso, quiçá abusivamente); aquela mesma dor que tive no preciso momento em que me entreguei de corpo àquele objecto pequeno, feito para senhoras pequenas e que, nas próximas duas horas, seria o meu reino de árvore e artesanato. amaldiçoei o artesão, fosse ele biológico ou de máquina, chorei as minhas homoplatas e sentei-me na obediencia desse ritual: o de me sentar. antes dos outros e tudo, que eu nisto de pagar penitências sou o primeiro a chegar-me à frente, cioso do meu padecimento, orgulhoso da plateia chorosa e, talvez acima de tudo, inquieto perante o relógio que marca onde a coisa começa e a coisa acaba. sentei-me entre ruídos e o tempo não passava mais depressa por isso.
Olhei o teatro. não o conseguia ver mas olhava-o com sofreguidão, com mais olhos do que barriga. ouvi o eco distante dos atrasados, os eternos atrasados que se atrasam concerteza para minorarem os prejuízos lombares, retardarem a paixão das suas costas exigida pelos prazeres dos seus ouvidos, e percebi as armas dominando o recinto, exaustas dos séculos em que dominam tudo dessa perspectiva superior onde provavelmente não enxergam tão bem o espectáculo, o do palco e o dos homens. deveria haver quem perguntasse aos símbolos se eles se sentem bem nas alturas, quem averiguasse se os grandes não se sentiam melhor sendo pequenos. ou simplesmente se não gostavam por um dia de ser homens, e de cheirar a suor, e de beber água fresca, e de pagar impostos, e de fazer contas, ouvir música e até, quem sabe, terem dores nas costas.
Claro que tudo isto versa uma obsessão controlada, silenciosa, de que eu me queria livrar mas que não consigo sem ajuda. calculo que se estudassemos a fundo o problema do espectáculo sobre a óptica do espectador, teríamos ganhos relevantes, não só porque construiríamos cadeiras mais confortáveis, mas sobretudo, porque o conforto das nossas costas permitiria o total abandono dos nossos milhares de sentidos poéticos à fruicção da obra, à compreensão própria da obra, libertada do jugo enervante dos maciços sólidos que nos suportam a sedentarização.
Alto lá! quando a luz baixa, interrompendo os zumbidos humanos, sabemos todos que é altura de nos comportarmos. as conversas interrompem-se em xiuuus mudos, tudo tem de permanecer em intervalo depois da escuridão. a unidade musical de Chostakowski e a unidade matemática de Mozart deixam de se degladiar nos lábios sumidos de unidades materiais ainda mais sumidas que são os velhos conservados em comprimidos. também já não se pode continuar a vida da cristina através de facadas mórbidas de prazer, a explodirem o ódio em sangue da outra, que não está, foi a uma festa de bacocos, uma cacofonia filha, uma cacofonia! estamos suspensos, a música ainda não aquece, mas começa a prometer para lá dos holofotes modernos que dão contornos de limão à deusa romântica que não veio preparada para tanto UV1 e UV2. qualquer dia sacam-lhe a mama! despelam-na toda! um restauro cuidado, de pincelinhos e latinhas douradas, dão-lhe uns beijinhos de anti-corrosivo e mandam a música ir tocar para outro lado enquanto se resolve o cancro da velhice.
Já estou a entrar pelo tempo a dentro e assim não vale. estamos no intrevalo das nossas vidas, o espectáculo vai começar. Já aplaudimos, sedentos. Já percebi que as estrelas humanas têm sempre um jeito tremido de brilhar, agarrado de mãos, pés, cabeça e tronco a rituais mais e mais rituais, mais e mais agradecidos, mais e mais pavoneates. que toquem bem essas cordas! que soprem como nunca esses cantos! eu estou aqui, borlista mas apaixonado, e vão ter que me provar que nos merecem aqui sentados, doídos, muito importantes da nossa importância em fazer-vos os mais importantes de todos, com educação.
Se não me engano, começou afinado o batalhão de violinos que se posicionava estratégicamente no hemisfério norte do cosmos metálico. enlevava-nos na sua cadência trauteante como se os militares de repente fossem alegres para a batalha. como se não chorassem os seus corpos mesmo antes de os cheirarem, despojados de massa, a fruta fora de prazo. o maestro, o que manda em nome da ordem, tinha aquele peculiar jeito de mandar, sideral, espacial, de outro mundo, comum àqueles que neste mundo fazem por não lhe pertencer. pensei. façamos as guerras semelhantes a sinfonias e teremos pólens transportados em patas de insectos que voam aos círculos abraçando o mundo.
O poder da música consiste em fazer-nos sair da música quando a ouvimos e a experimentar dimensões menos constantes do nosso corpo. porque quando sabemos a delicadeza com que deve rufar o tambor não respeitamos apenas os dedos que percorrem a harmonia da harpa, nem o controlo de pensamento e acção que devora os fios pesados do violencelo, sentimos a total harmonia de necessidades que controlam todas as nossas insignificantes misencenes, e as significantes também. Tossem. uma constante, como as dores nas costas. tossem e mexem-se os homens, os aborrecidos, os pseudo-aborrecidos e os pseudo-interessados também. à sua vez, todos tossem, abafando todos os outros sons em movimentos de tecido roçado em pano. enquanto a música se adensa, percebo a nossa imensa necessidade de nos mexermos, o pleno exercício de um corpo para a frente mas que se lhe apetecer, vai para trás à mesma velocidade, que nos corpos, como se sabe, é constante.
Por esta altura já todos nós estivemos, nem que por segundos, em comunhão dramática com o palco. é hora de pagar tributo. há sociedades que o prestam em silêncio, pensando talvez que se aproximam mais do uno nessa vastidão de aridez. nós despejamos aplausos, aplaudimos tudo, furiosos, massacrados. queremo-nos fazer ouvir, ora essa! que os teus quinze minutos de fama sejam o som das tuas mãos vibrantes uma na outra a explodirem agradecimento! uns choram, provavelmente porque nalgum recanto do processo se aproximaram de si próprios. e podem não ter gostado do que viram. ou podem ter gostado muito, o que interessa é que choram porque o perderam. e lá vamos, cavalgando com o artista, que para nós será sempre dióniso em paz com todos os sacríficios, martelamos o ar, começamos tufões nos antípiodas. acordamos. percebemos que eles já lá não estão. Os artistas? Não, os antípodas. pateamos novamente, galhardamente. há quem se erga, há quem se curve. eu lembro-me bem de toda a minha incoêrencia e não exito em tributá-la também a essa salva de palmas. porque tem que ser, penso. porque a música continuou a tocar virginalmente, em pequenos intervalos de eternidade. não sei porquê, acho-o. e passaram-me, de forma mágica, as dores nas costas.

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