9/20/2006

inundação.

Quando a mesa se soltou e partiu em dois. Escaqueirada no meio do chão com as suas pernas aniquiladas, o seu tampo inclinado em derrota, nesse momento, supremo de água entornada em alcatifa clara, manchando o chão como sangue, nesse momento dizia, ainda nada se tinha afigurado difícil de resolver na minha cabeça. Nem mesmo o caso mais complicado. Estarrecido diante da queda, somando as flores que morriam mais e mais coladas ao chão, tudo me parecia um acidente, um fenómeno singular tão prenhe de análise como as contas de somar. Pensei em dados concretos, explicações. A vertigem ocular em que o Pessoa come o pó da minha sala, já molhado como o chão e a alcatifa. Dir-se-ia assassinado, não o homem mas a arte no homem.
Não interessa, tudo se começa a complicar brevemente. Se pararmos para pensar é o que acontece. A mesa, a queda da mesa. Objecto robusto, sem falhas conceptuais, de essência ou mão-de-obra. Sólida. Sentava-me nela, não só eu, visitas ocasionalmente também o faziam, não rangia, não se desmoronava. Sólida como uma rocha. O mistério adensa-se.
Curvo-me para apanhar folhas, não o livro, não as flores, a água já fugiu para algo de mais essencial, inicial se quiserem, se bem que aos inícios temos de dar fins pois de contrário tudo é zero. Ela lá sabe de onde vem. Pingava em goteira, escorria pela mesa, pelo derrube da mesa, sentenciava-lhe o fim gota a gota, fria, mecânica, como um relógio. A mesa morria diante de mim, soube-o quando apanhava as folhas, salvas miraculosamente da fúria líquida, desta tempestade tenebrosa que me assolou o quarto.
O papel mais branco no chão que em minhas mãos, o papel conceito que segurava fortemente com os dedos, o papel subtraído em folhas, folhas mais brancas quando pensava nelas em papel, no abstracto. Agora, pedras ferventes, arroladas às minhas mãos fracas. Às minhas mãos fracas que desconhecem o antídoto do calor. Às minhas mãos humanas, organismos que conhecem os percalços da dor.
Ali, diante de mim, sobreviventes ao dilúvio. Poemas mortos, fingidos, esquemas mentais traçados a tinta preta, esquemas de fuga, planos elaborados de túneis, correntes de mar, coordenadas, fios infinitesimais de corrente eléctrica. Tudo isso, as folhas que me queimavam, que enxotavam para o vazio os pensamentos de catástrofe. O mistério é outro.
Simples. Uma compensação cósmica, waroldiana. A arbitrariedade do movimento consagrou-me na arte. Sobrevivi da cheia num poema, sou o náufrago do seu próprio quarto.

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