5/14/2007

1/2 minuto de sinceridade.


A descida das escadas mais do que nunca soava-me a peregrinação em matadouro. A vaga humana torna-se fluxo cadenciado da própria experiência de domesticação: o animal mais difícil de padronizar tornou-se um amplo reflexo de identidades misturadas, de mistérios vagos. Se não me despacho e esqueço, entre outras, a antiguidade pré-clássica, ainda perco o metro.
A primeira fila depois do sol da marginal é a mais difícil de suportar. Apenas quatro pessoas me separam do diálogo em braile com uma caixa-forte de ferro, aprisionada em 4 sinapses pré-programadas: bilhete simples, ida e volta, 10 viagens, mensal. O prodígio da técnica relembra-me os piores receios da adolescência em que acreditei no cinema de Hollywood, vendedor de calamidades sazonais, e que nessa década de noventa nos serviu um mundo robotizado onde homens mal armados lutavam com máquinas prodigiosas. Malogrados esforços shwarzeneguerianos: algures numa parcela diminuta do hemisfério norte um jovem brilhante e disfuncional está a ser encarregue de uma missão. Essa é a de nos salvar; é nisso em que eu acredito. Não sei é dizer de quê. Ou de quem. 50 mais vinte mais cinco cêntimos equivalem a um bilhete simples na máquina operária ao serviço do direito público de exploração privada. Adiante.
A pequena língua de cartão silábico a que os meus setenta e cinco cêntimos conferem estatuto de válido, fornece os dados pessoais e intransmissíveis da sua individualidade unica, celular. A mais sofisticada elaboração mecânica ao serviço do controle mecânico de seres humanos selecciona cuidadosamente os que de nós cumprem as coordenações emanadas de cima, da cúpula sagrada que nos governa há mais de dois mil anos e que, com maior ou menor noção de marketing, nos tem aperfeiçoado no caminho da ordem, da disciplina e do bem público. É essa a trajectória das portas automáticas quando accionadas pelo meu bilhete digitalizado: eu cumpro a função de bom ser social submetendo o trajecto à total automatização dos meus passos. Levem-me ao trabalho, explorem-me bem aí.
Dezenas, centenas de pessoas acotovelam-se numa plataforma a que não falta o misticismo negro do submundo pré-neolítico. Até a iconografia dos azulejos será imperceptível a um principiante, cortada ao meio como está por um tecto falso recheado de câmaras-espias, tão violadoras como sufragadas, todos os dias, por todos nós. Somos homens das cavernas obrigados à escuridão deste futuro vivido na imaginação cinzenta de um funcionário público. De um entendiado cumpridor de acções estabelecidas e memorizadas no seu intervalo fumante entre catalogações. Nesta plataforma não falta o audiovisual. Os gestores deste paleolítico em minituara não suportaram durante muito tempo a pausa na exaustão entre partidas e chegadas; era um lapso de estrutura na nossa educação, um erro que poderia comprometer a causa. Lá está ela agora, a televisão, a imprimir mais umas quantas cifras na nossa encefalogia hipnotizada. Não desenhamos mamutes, auroques, tigres dente de sabre. Não iniciamos a expansão artística da nossa sensibilidade, a abstracção existencial perante os eternos mistérios. Soterrados, cumprimos longas obrigações. Penosas vidas em cavernas desprovidas de alegorias. A luz é dia após dia mais ténue.

2 Comments:

Blogger Jorge Bicho said...

muito alegórico, muita estrutura, mas gosto mais de te ver pelos poemas, simples belos. Gostos...
beijos
JB

July 24, 2007  
Anonymous Anonymous said...

É suposto isto ser para o português comum entender?

September 04, 2007  

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