5/11/2007

Tratado sobre os componentes oculares


A Maria arrumou a carteira, as chaves e o tabaco na mala a tira-colo com que sempre navega Lisboa. Ultrapasssou o remorso de infância que a coage a não deixar a cama por fazer. O banho fôra imenso e o gasto de água criminoso. Maria não trancou a porta da rua com duas confirmações. Os 3 cortes longitudinais ainda abertos nas suas côxas têm tudo a ver com isso. Zuc, zuc, zuc. Ontem à noite houve amor entre lâmina e vaso sanguíneo.


A Maria não interferiu. Esquecidos os primeiros rituais, demorou-se na papelaria. Pressionada pela ideia de que soubessem da sua história, vasculhou ávida as parangonas. Diário de, jornal de, notícias, notícias! Era ver o cinzelado das suas vistas sedento da prova que provasse que ele tinha estado no seu quarto, às 10 da noite, empunhando a faca e cortando-a aos poucos dos laços que a prendiam ao quotidiano. Sem dor nem mácula.


Perdeu horas no ambiente vazio das prateleiras, na gula salivática da empregada mascando uma super-gorila. Maria consumiu-se desesperada entre as colunas do país e do mundo, entre o terramoto asiático e o milagre sul-americano. Ouviu o forró medonho a estupidificar a sua alegria de cacos. Cacofonia: poderia ser Joy Division e o antigamente de Maria não se teria erguido também. Por entre as letras uma mão, uma força que a imobiliza e que sorve a primeira gota do seu sangue. Conserva-te movimento, imagem sólida na retina.


Finalmente a rua. Os cortes de Maria podiam não ser notícia, podiam dificultar-lhe imenso a correria que precisava. Mas sobretudo deambular pela baixa era só um exercício de memória. O Chiado esfumava-se sem densidade aos passos de Maria, à cadência furiosa de Maria que tentava mistificar a humidade do seu sexo. Era o cheiro que não saia do ar, a sensação de que o largo de Camões, o próprio Camões a seduzia baixinho; no seu quarto, no embaciado da sua córnea.


Meteu-se no primeiro eléctrico. O 15. de nada interessava o destino programado do 15. Para ela todas aquelas paragens, todas as voltas alfacinhas daquele amarelo ferroviário, eram círculos em círculo sobre um só objecto. Desejo. Desejo. As côxas apertadas virginalmente no banco antiquado, o trepidar caminhante da roda sobre os carris, da mão sob a mala que era agora afecto do colo. borboleta diurna, Maria; arco colorido formado pela decomposição da luz solar e também denominado arco-íris.


O Tejo reflectiu o decoro da senhora da frente. Das que se sentam no banco dos palermas. Palerma! Vejam só... a observar-me. Maria tocou a campainha do seu receio, reuniu todas as tropas do seu corpo. Clarim, clarim! Dar largas à liberdade do abandono, da sedução. Pupila gostativa de iguarias de excentricidade. Minha chinesinha, dizia a mamã. Sem dúvida que tenho uma originalidade asiática. Ela seguir-me-á com certeza. Tem mais que presentes os meus cortes e o vigor secreto do meu prazer. Rigorosamente cristalino.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Good for people to know.

November 11, 2008  

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