11/17/2006

O jantar de família.

Joana chegara atarefada. Rebolava-se aos encontrões pelas portas e pelos sacos bulímicos que vertiam, arrotavam presentes inúteis. A porta não segurava. Quem a convence agora da praticabilidade da arte nova? Joana era lágrima contida, depressão do natal encravada entre o frio da rua e o frio de dentro, daquele hall de imensa insignificância.
Joana pesara bem os prós daquela visita. Convinha-lhe aparecer decente e bem vestida, distribuir abraços meigos e beijar muito. Beijar sempre, quando já nada houvesse a dizer. Mas a luta resistente com a porta, aqueles dois segundos de dôr, de dedo indicador preso em fechadura de ferro, aquele conflito desaguava-lhe nos contras. Nos sucessivos e embaraçosos contras que alegremente tinha passado a ferro durante a semana. E dobrado cuidadosamente na gaveta do armário.
Porque Joana estava rigorosamente abstraída daquele 2º esquerdo de hesitações. Não lhe ligava, nem a ele nem ao recheio, à mais de um ano, exactamente àquela mesma hora daquele mesmo dia preso aos sacos e ao elevador fechado, a obrigar subir as escadas. Avós, pais, tios... maninho! Aqui está a vossa Joaninha de sempre, a corresponder aos altos e baixos dos vossos anseios, mais gorda sim, um pouquinho, mas também mais rica e cheia de docinhos e prendinhas patrocinadas pelo senhor director que é um exemplo de patrão e me deixou sair mais cedo, no dia 23, com o carro da empresa, a estourar o VISA em saudades vossas. Os meus.
Joana sabia onde ficava o interruptor. Sabia-o de pequena, aterrorizada com o avô a subir as escadas, a não poder carregar na luzinha de laranja, porque gasta e não é o teu pai que me paga o condomínio! Sentia-se a sede dessa menina de baloiço agora. Para recordar o avô que era bruto mas bom homem, ou para evitar o resto, o que se seguia. Soluçou para dentro proibições antigas, primeiros vícios, rodou os calcanhares e acendeu um cigarro. Sem mesmo largar os sacos. Ouviu ruídos, sussurros de velhice a saírem de caixinhas de fósforos. Adiava-se no escuro, apenas um ténue borrão de luz que se arde.
Antecipou o que a esperava. Uma casa cheia, preocupada. Móveis de salão, sala de estar, sala de jantar, ali sempre se souberam acomodar boas tradições. Ao jantar, os denodados esforços do avô para seguir direitinho, para ir buscar todos os dias ao mesmo escritório a mesmo prestação da casinha que um dia havia de estar paga. A ausência da avó, um simples espectro entre escravidões consentidas. Mas tudo em família, tudo muito conjugal. Joana entrou em vapores para a cozinha, escorregou o corredor abaixo e já ouvia os manos falarem o seu futebol, a mãe partilhar-se à irmã entre puxões de camisola, e o que restava do serviço de catering que é assim que se faz, numa família em que os velhos já não fazem nada.
Apagou-se. Ouvia o primo gritar, esconjurar os diabos do porto e as respectivas mães, as tias, e toda a prole que sobrasse. E Joana sossobrou perante o vinho a mais daquela ceia, dos efeitos que provocava, a apertar os presentes numa forma de T3 apertado. Recostou-se ao irmão, também caçado da sua vida para aquele compromisso, fez o favor de o resguardar como dantes. Um beijinho, como é que estás? Não, como é que tu estás? E foi-se com a beata que deitou pela porta que encravava.
A gloriosa carreira. O emprego generoso. Joana serviu-se de tudo para dar de pratada, de perú recheado, de tronco, filhoses e leite creme, de tudo o que à mãe lhe chegasse para considerar a ausência da filha justificável. Afinal, era dia de Natal! Mas Joana insistiu nas considerações, fez promessas nunca ouvidas. Pediu o mano ao telefone, como é que estás? Não, tu como é que estás? Beijinhos ao pai. A avó? Catatónica.
Sedada pela pressa de fugir. Injectada de um líquido que não conhecia. Uma substância nova nas suas ilusões, Joana era a verdade de um regresso a casa. O viver de um amor que ela só sentia quando ausente.

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