11/16/2006

O café.


O sítio em si, o local, o espaço, evoluiu. Nada permanece enclausurado numa redoma de vidro, de museu. Nem conserva a temperatura certa para preservar metais, cerâmica e essências perecíveis. Existe contudo, a eternidade dos balcões, atravessando as décadas sustendo os cotovelos de quem o toma, simples ou com cheirinho, lambuzados entre as bacantes, sujos, entornados, persistentes. Combinaram-se revoluções entre bagaços, o café existiu sempre como uma justificação. Para vingar alguém, para dentro de si tremer a conjurar, qual dos seus eus há-de matar, para com engenho, salvar o outro, o essencial. São maquiavélicos os cafés e é a sua audácia que nos reflecte, que nos escarra enquanto espelhos, a nossa rigorosa humanidade.
Entro ensopado. Deserto. Como eu, o café manifesta-se contrariado ao rigor do próprio dia. É a sua alma que se queixa, não os tijolos ou a telha, a argamassa, silenciosas e obedientes, como sempre. Percorro-lhe o vácuo de alcool, que se não cheirar, não é de um café que se trata. E sou o feitor da Casa da Índia, ou o armeiro, a feder, a mandar construir para matar, dez mil obuzes por dia. Amanso-me, rotundo. Torno-me humilde devagar, passo a passo. Desenterrei meia coroa do bolso e estendida, já é servil que implora: uma bica, por favor!
O encarregado já malhou o ferro contra o pau, já tortutou o que resta da união familiar dos bagos de café, esmigalhados, prendidos, separados de uma nascença já de si fingida, para a tortura faustosa do estomâgo. Fervam, abundantes. Borbulhem no vapor do que vos vamos dar em água fervida. Consumam-se que já vivos não estão. Quer cheia? Está louco!? Repare bem no fundo dos meus olhos. Se os consegue ver, aniquile-me uma curta. Já! Que por si não esperam os lápis, as aparas e os cadernos.
De entre os cheiros rola um novo perfume. De feira. De ontem num hoje não acordado, em directa para outro desespero. Abram-se alas. Ajoelhem-se ao orgulho de uma puta que ainda não dormiu. Prestem a vassalagem ao açucar dos naufragos da vossa pátria e deêm-lhe o descanso servido em chaveninha gorda e colher de casinha de bonecas. Toma. É o teu sonho de criança. Remexe o líquido, claro, tu não gostas do açucar todo, eu também não. Mas mexe bem o café. Eu respeito-te, e sei que és a sólida matéria de que se faz o império hoje. Uma cadeira para a senhora! E para mim, Romão, o jornal.
Circenses passos de mola, e era trapézio o chão molhado que me sustinha do balcão à mesa do canto. Sempre minha, se desocupada. Equilibrada na mão tremia a estátua do meu vício desmedido. A prometer borrar a pintura, chorando aos tremeliques que a deixassem fugir. Para os azulejos de bolinhas, para o tapete em réstia tornado. Para a sarjeta a poluir o mar. dali para fora, para qualquer lado.
Rossava as calças naquela verga artesanal, do que sobra simplesmente por sobrar do que éramos de facto. Colecciono o lugar, como pessoa. Como máscara de grego fingido antes de cristo, das sombras e dos cafés. É aquela que se senta ali, pronta a desafiar o jornal. Pronta a persistir o seu número de folhas, a analisar futuros com correcção de gralhas, a não perceber nada do índice de psi20, ou tão pouco, frustrante, como de kondratieff. De ondas, que sejam as que batem lá fora, com imaginação, contra os carros, inundando de lama os passeios.
A dor azeda das luzes apagadas a meio da tarde. Mousses de chocolate a reflectir a sua guloseima, tão quimérica, tão de pacote. A entristecerem papilas gustativas como a minha alma. Sou um mário parisiense a atravessar uma ponte até à sobremesa. Planeaste. Falhaste. O suícidio tresanda a espresso pedido no final de um destino prolongado de comboio. Plastificou-te e engordou-te. Faltou-te a angústia do Antero que ia pouco a cafés.
Saio. Já me ritualizei. Sou um ameríndio a voltar à vida activa, ao seu passeio recheado de bagas venenosas, que conhece de cor. E as saudades que te tenho duram apenas um amanhã de renascimento simbólico, quem sabe, medieval, proto, pré, histórico.
Não pertenço à tua geração dourada. Não me tens como geração sequer. Não fui estudante nos teus braços, os do meu tempo estão mais isolados. Não te consolidei poeticamente em algo de material como outros. Do teu negrume não me brotaram manifestos nem assassinatos. Foste sempre uma curva de caneta ao acaso violando toalhas, sem qualquer respeito. Nem tu, pela obra. Rasguei-te as pontas, incontáveis vezes. Deixei-te por pagar. Silenciei o meu tédio nos teus gostos, nos teus assuntos apenas. E sonhei com o teu passado. Com a vertigem com que desço no teu vácuo, mais fundo dentro de mim.

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